Em 1989 o filme “De Volta ao Futuro 2” mostrou uma previsão para a Califórnia do ano 2015: pessoas andando com óculos de realidade virtual como se fossem os nossos atuais celulares. Nele, o protagonista Marty McFly, que no primeiro filme da trilogia visita a década de 1950 e acaba quase apagando sua própria existência, encontra seu filho adolescente com um desses headsets de VR praticamente grudado na cabeça.
Mas mesmo depois de passarmos por 2015 fora das telas, a Realidade Virtual ou RV (“Virtual Reality” ou “VR”, em inglês) ainda não se tornou algo tão presente nas nossas vidas, mesmo que esteja crescendo rapidamente. Um estudo da empresa Artillery Intelligence prevê que essa tecnologia atinja 25% dos usuários de Internet nos Estado Unidos até 2023. E as remessas globais de equipamentos de realidade virtual e realidade aumentada (AR) devem alcançar a marca de 43,5 milhões até 2025, um crescimento de incríveis 690% em relação aos valores de 2020.
Parte desse crescimento está no fato do potencial que a VR tem de mudar a maneira como as futuras gerações vão estudar, usando experiências imersivas que dão aos alunos um entendimento mais aprofundado sobre cada tema. “Os limites são praticamente infinitos. Professores de história podem levar seus estudantes para dentro da ação, recriando importantes batalhas. Os estudantes também podem fazer visitas guiadas a museus ou recriar modelos em 3D de pontes e edifícios, para analisar os efeitos do tempo sobre essas construções, por exemplo”, afirma Jonathan Kinsey, designer sênior na Collegis Education, empresa que provê serviços de tecnologia para a educação. “É uma ótima ferramenta para aplicar conhecimento”, completa Kinsey.
Gur Windmiller, instrutor de astronomia na Universidade de San Diego concorda: “Acredito que a RV pode ser usada em qualquer tipo de conteúdo onde seja útil ter uma combinação de imersão, interatividade e noções espaciais ou em três dimensões. Com o financiamento ideal e o uso correto podemos ver muitos conteúdos se beneficiando do uso da RV”.
O professor Steven King, da Hussman School of Journalism and Media da Universidade da Carolina do Norte, é mais um docente que se aventurou na área e construiu uma versão em 3D da sua própria sala de aula, para permitir que seus estudantes pudessem entrar, falar uns com os outros e formar grupos, mesmo que virtualmente. “Eu sinto que estou me engajando mais com a classe, tem um aspecto de comunidade que não teríamos somente com o Zoom”, declarou um dos alunos de King para o jornal “The Daily Tar Heel“.
Realidade virtual nas ciências médicas
Ensinar anatomia ou neurologia envolve traduzir uma grande quantidade de complexos dados e informações tridimensionais para imagens bidimensionais que se encaixem em cadernos, livros e apostilas. Tod Clapp, professor-assistente no Departamento de Ciências Biomédicas da Universidade do Estado de Colorado diz: “Começamos a apostar na realidade virtual porque queríamos encontrar uma solução para o fato de que nossos estudantes precisam traduzir conhecimentos que eles aprendem em 2D para a prática, em 3D”.
Para isso, a universidade construiu o primeiro laboratório de Realidade Virtual em larga escala, com mais de 230 metros quadrados, equipado com mais de 100 computadores e headsets de VR. Com isso, estudantes de anatomia podem trabalhar em equipes de quatro pessoas, interagindo entre elas usando o equipamento. “Os estudantes avaliaram o curso como tão ou até mais engajador do que as aulas presenciais”, afirma Clapp.
Eles dizem que sentem que estão tendo uma aula particular. As classes com VR permitem que os instrutores ‘ocultem’ e ‘revelem’ alunos, portanto, quando um deles faz uma pergunta ao professor, eles veem somente eles mesmos e o professor, o que dá essa sensação mais direta e pessoal
Desde que a Universidade do Estado do Colorado se tornou pioneira ao usar a RV em larga escala nos seus programas, grande parte do conteúdo dos cursos teve que começar a ser produzido internamente, o que representou uma grande demanda para a instituição. Ainda assim, Clapp afirma que o esforço vale a pena: “Na área de ciência de materiais, tivemos a oportunidade de ver alguns colaboradores analisando a maneira como os átomos se alinham em metais através de RV. Isso é algo especial, porque quando você vê isso em três dimensões e tem a chance de debater com seus colegas, você ganha uma outra visão de tudo”.
É uma oportunidade de ver como algo acontece em sua versão natural. Mesmo que seja através de um celular, de uma caneca ou qualquer outro elemento usado para compor o cenário, com a RV conseguimos interagir com o conteúdo em 3D, o que acaba sendo muito mais intuitivo Tod Clapp professor-assistente no Departamento de Ciências Biomédicas da Universidade do Estado de Colorado
Voltando no tempo através da VR
Fãs de história podem já ter se perguntado como seria ser um gladiador no Coliseu do ano 80 D.C … Ou como seria andar pela cidade de Pompéia em 79 D.C., ver seus monumentos, seus afrescos e saunas públicas antes da lava chegar. Ou observar a construção da grande pirâmide de Giza durante o reino do faraó Khufu por volta de 2500 A.C. Mas com a realidade virtual, estudantes de história podem explorar essas e outras civilizações antigas quase como se estivessem lá.
Em 2018, pela primeira vez, estudantes de antropologia das universidades de Harvard (EUA) e Zhejiang (China), “viajaram” virtualmente para o campo de Giza para estudar as tumbas e a Esfinge a partir de suas salas de aula equipadas com headsets VR. Mesmo separados por quase 12 mil quilômetros, os dois grupos de estudantes puderam trabalhar lado a lado com seus avatares para examinar o terreno, as tumbas e estudar os hieróglifos egípcios.
De lá para cá, aplicativos como o KingTut VR, o Timelooper e o Trench Experience VR permitiram que estudantes visitassem a tumba do rei Tutancâmon, vivessem a realidade da Segunda Guerra e viajassem virtualmente ao redor do mundo, tudo a partir de um headset de RV. Enquanto isso, plataformas como a ClassVR têm ajudado a trazer outros elementos da história para as salas de aula via realidade virtual, levando alunos para visitar as pedras de Stonehenge, a tumba de Ramsés VI ou a Acrópole de Atenas. Além disso, outros meios de comunicação, como os próprios The New York Times e a BBC também se aventuraram na área, lançando grandes projetos e experiências em VR.
Prática de emergência médica sem risco
Em um hospital, as enfermeiras precisam tomar decisões difíceis sobre seus pacientes, muitas vezes em situações estressantes e de alto risco. Durante décadas, os instrutores da área utilizaram os serviços de manequins para demonstrar procedimentos, ensinar técnicas e permitir que seus estudantes praticassem. Infelizmente, ainda não existe um cenário com situações de risco controlado para que esses futuros enfermeiros e enfermeiras pratiquem o pensamento rápido e sob pressão. Mas o VR pode ajudar a simular melhor essas situações.
Em 2019, a Escola de Enfermagem da West Carolina University conduziu uma simulação em realidade virtual. Os participantes foram introduzidos a um ambiente virtual onde um paciente estava enfrentando uma reação alérgica grave. O paciente virtual, que no caso tinha sido mordido por um gato, havia recebido uma dose de um antibiótico que o levou a entrar em choque anafilático. O que os participantes tinham que fazer era resolver rapidamente o caso para evitar que o paciente piorasse.
Para Patricia Rade, uma das estudantes envolvidas no teste, o experimento foi positivo: “Senti que estava mesmo vivendo aquela cena e lidando com uma emergência real. Foi uma experiência ótima. Tive que usar todo meu conhecimento e raciocínio crítico para saber o que priorizar naquele momento”.
Além de simular cenários que seriam difíceis de replicar, a realidade virtual ainda pode ajudar a reduzir custos de treinamento que muitas vezes acabam caindo sobre os próprios estudantes. “Os estudantes de enfermaria e medicina são grupos que precisam de mais ferramentas do que qualquer outro. Ferramentas essas que precisam ser compradas de novo a cada experimento. O que o sistema de VR nos dá é a chance de dizer: ‘Peraí, vamos substituir essas ferramentas antigas por algo mais duradouro. Faremos um investimento inicial maior, mas depois não precisaremos mais pensar nisso nunca mais”, exemplifica Jonathan Kinsey, da Collegis Education.
Aprendizado mais envolvente e prático
Os estudantes muitas vezes precisam se conformar com uma versão básica e pouco interessante do ensino quando acessam métodos de educação online: ficar horas encarando uma tela. Mas as salas de aula virtual podem sim ser mais engajadoras, e permitir uma maior retenção de atenção, maior até muitas vezes do que as próprias salas de aula tradicionais. Os alunos podem interagir entre si usando avatares, ter uma visão mais próxima daquilo que estão aprendendo e até se envolver fisicamente com o assunto abordado.
Windmiller afirma: “Não tenho dúvidas de que a RV é extremamente interativa, principalmente pelo fato de ser uma novidade e algo diferente do que os outros estudantes estão acostumados a fazer”.
Clapp concorda e afirma: “Quando as pessoas interagem no campo virtual, elas até costumam virar seus avatares para conversar com outro avatar frente a frente. Isso para nós é só uma prova de que a VR é um recurso valioso, muito interativo e interessante, principalmente quando consideramos o valor de ter essa experiência em três dimensões”.
Um estudo de 2020 mostrou o quão eficiente o ensino com RV pode ser, chegando à marca de 75% de retenção, um valor 5% maior do que as aulas presenciais e 10% maior do que a leitura. O único tipo de ensino que se mostrou acima da realidade virtual foi o ato de ensinar outras pessoas, que obteve uma taxa de retenção de 90%.
Outro estudo realizado numa sala de aula de Pequim, China, comparou a RV com métodos tradicionais e revelou que os estudantes que receberam aulas que usavam essa tecnologia tiveram notas entre 27 e 32% mais altas que seus colegas.
Assim como qualquer outra tecnologia que funcione conectada à Internet, a RV tem também seus problemas de privacidade e cibersegurança. Até porque esses sistemas podem armazenar dados sensíveis e pessoais e estão vulneráveis a vazamentos e a “deep fakes”, um tipo de vídeo criado artificialmente que imita a maneira em que uma pessoa específica age e fala. Por isso, qualquer um que esteja investindo em realidade virtual deve se preocupar em aprender como reduzir seus riscos de cibersegurança e privacidade e como realizar procedimentos de segurança, como criptografar dados sensíveis e manter seu firmware sempre atualizado.
O panorama geral é que a realidade virtual tem muito o que oferecer para a educação, podendo melhorar o engajamento e a retenção de informação dos alunos e facilitando a simulação de experiências difíceis de replicar, que vão desde uma tarefa a ser realizada sob pressão até uma viagem no tempo por eventos históricos do passado. E mesmo que a adoção generalizada ainda esteja longe de acontecer, também vemos os headsets de VR serem vendidos cada vez mais rápido ao redor do mundo. Se usada de um jeito seguro e planejado, a conclusão é que a realidade virtual pode nos ajudar a descobrir novas habilidades, competência e abrir portas para as próximas gerações.