Você está na seção de aves do supermercado, tentando comprar um frango para o seu jantar. Logo você vê que uma das embalagens tem uma etiqueta diferente, marcando um preço mais baixo porque está próximo da data de vencimento. Você compraria esse frango? Talvez, mas nem todo mundo faria isso, já que muitas pessoas não pensam em preparar aquele frango na mesma noite. Mas se a pessoa já tem isso em mente, é provável que ela não só compre o frango mais barato como saia contente do supermercado por ter economizado alguns reais.
Quando você multiplica esse pensamento e aplica para as inúmeras decisões que acontecem em cada supermercado todos os dias, o senso comum é que esse tipo de precificação pode se tornar um fator revolucionário para o varejo caso os preços se alinhem em relação ao vencimento de seus produtos. Mas organizar esse tipo de sistema de precificação sob demanda é algo que aumenta consideravelmente o trabalho dos comerciantes.
O desperdício de alimentos é um problema de escalas alarmantes. Segundo a ONU, 1,3 bilhão de toneladas de comida são desperdiçadas todos os anos no mundo, o equivalente a 2,6 trilhões de dólares americanos. Isso corresponde a um terço de todo o alimento produzido para consumo humano. Com isso, o desperdício de alimentos alcança 6% de todas as emissões de gases-estufa do mundo, valor três vezes maior que o de toda a aviação comercial.
Apesar disso, a startup Wasteless, fundada em 2017, acredita que uma nova tecnologia, baseada em Inteligência Artificial, pode ser aplicada na precificação dinâmica de alimentos para reduzir radicalmente o desperdício antes que os supermercados tenham que se desfazer de produtos vencidos ou encalhados.
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A Wasteless já opera em algumas redes de supermercados, como Dia (Espanha), Iper (Itália) e Intermarche Jurbise (Bélgica). Em 2020, eles foram classificados em em 19º lugar na FoodTech 500, uma lista global de startups dos setores de alimentos e agricultura feita pela consultoria especializada Forward Fooding, em uma análise que media alcance, pegada digital e práticas de sustentabilidade.
Combinando seu algoritmo com um sistema eletrônico de etiquetas de gôndola (ESL), as lojas podem mostrar preços que diminuem conforme a data de vencimento dos produtos se aproxima. Isso porque as ESLs mudam em tempo real conforme o algoritmo determina. Quando as unidades próximas do vencimento são vendidas, a ESL volta para o preço original do produto.
“O desperdício de alimentos é um dos maiores custos de um supermercado. Não faz sentido que isso continue assim, desde todos os pontos de vista: do consumidor, do negócio e do meio-ambiente”, afirma David Kat, Vice-presidente de Desenvolvimento da Wasteless.
Quando estamos fazendo compras e vemos uma salada com vencimento para amanhã e outra com vencimento para a próxima semana, a nossa tendência é escolher aquela com mais prazo de validade. A menos que sejamos recompensados por um consumo mais consciente
David Kat, Vice-presidente de Desenvolvimento da Wasteless.
Pelo menos isso é o que pensam os supermercados. A própria Wasteless cita uma declaração do ex-diretor de TI da rede italiana Iper, Gian Maria Gentile, para comprovar esse alinhamento. “A Iper quis implementar a tecnologia da Wasteless para estimular os consumidores a fazerem escolhas mais sustentáveis, reduzir o desperdício e otimizar a disponibilidade de produtos”, afirma Gentile.
DETERMINANDO OS PREÇOS IDEAIS POR MEIO DA IA
A mecânica de preços dinâmicos da Wasteless usa um método conhecido como “aprendizado de reforço”. Esse sistema leva em conta os principais quesitos que os consumidores costumam avaliar na hora de escolher entre um produto com menor prazo para consumo versus um desconto maior. A escolha em si geralmente depende de diversas variáveis como, por exemplo, o número de unidades daquele produto disponíveis na prateleira.
O algoritmo também considera a data da próxima remessa daquele produto, quantas unidades restam no mercado, qual é o valor de cada unidade restante e quais são os potenciais substitutos disponíveis para tentar entender as escolhas e o comportamento dos consumidores. Essa lógica ajuda a evitar preços acima ou abaixo da realidade do mercado, e assim a escassez ou o desperdício de produtos.
Por envolver todos esses fatores, o sistema acaba sendo uma tarefa para a Inteligência Artificial. E segundo Kat, é isso que faz com que a Wasteless se destaque em relação aos concorrentes tradicionais. Segundo ele, o custo de sair por aí mudando etiquetas e criando seções de produtos em desconto não é nada baixo.
“Reetiquetar todo um estoque não é simples, em termos de operação. Além de ser um processo caro e demorado, você ainda deixa evidente que aquele é um produto que está depreciado e não vale o que valia antes. Já com um sistema como o da Wasteless, os descontos são aplicados no momento ideal, e não somente no último dia de validade ou horas antes do mercado fechar. Se o algoritmo detecta que o momento ideal para mudar o preço é três ou quatro dias antes do vencimento, a etiqueta é alterada na hora e assim você consegue vender o produto pelo preço ideal na hora certa”, afirma Kat.
UMA JORNADA COMPLEXA
A psicologia humana talvez seja a parte mais simples na luta contra o desperdício: os consumidores podem economizar dinheiro, fazer o bem e sair satisfeitos com isso tudo. Nos locais onde a tecnologia da Wasteless foi implementada, os resultados mostram que os consumidores entendem o sistema e respondem bem aos descontos, realmente diminuindo o desperdício.
Para os varejistas, esses incentivos também deveriam bastar, afinal quem não gostaria de diminuir seus gastos e ainda causar um impacto positivo no mundo, certo? Errado. Infelizmente, a psicologia dos negócios parece ser um pouco mais complexa.
De acordo com Kat, a Wasteless tem tido problemas para vender sua tecnologia para alguns varejistas. O primeiro problema é tratar com empresas que não têm um departamento de data science ou que não costumam ter o uso de dados como uma de suas marcas. Além disso, implantar esse tipo de tecnologia significa dar acesso a um terceiro para praticamente todas as camadas do negócio, especialmente ao departamento de TI, já que a Wasteless usa a nuvem, a rede e os protocolos de cibersegurança de seus clientes para trabalhar, apesar de guardar somente dados de precificação, sem armazenar dados dos consumidores.
Segundo o especialista, o ideal é que as áreas de finanças, marketing e operações de uma empresa saibam como funciona o sistema de precificação daquele revendedor. Porém, infelizmente, parece que esses setores não costumam ter praticamente nenhum interesse, nem assumem responsabilidade sobre o desperdício de alimentos.
“O desperdício é visto como um custo marginal de operação. Ninguém perde seu bônus de fim de ano por causa do desperdício. E isso é um grande problema, porque a maior fatia desse desperdício acontece em países de primeiro mundo, em ambientes onde o varejo e o consumo são fortemente incentivados”, afirma.
Mas o que esses revendedores ainda não se dão conta é que, independente do impacto ambiental, existe outra forte motivação para resolver o problema do desperdício de alimentos: o dinheiro. Com o trabalho da Wasteless na rede italiana de supermercados Iper, a quantidade de alimentos vencidos e descartados diminuiu em 39%, enquanto a receita subiu 10%. Já a cadeia espanhola Dia cortou o desperdício em cerca de um terço, enquanto aumentou seus ganhos em 6%.
Uma decisão fácil para vendedores calejados
Ainda assim, a ideia de otimização da remarcação de preços vem ganhando espaço entre alguns estabelecimentos. Kat acredita que cadeias menores tendem a ser mais empreendedoras e mais abertas a mudanças em comparação com as redes maiores, que tendem a hesitar mais na hora de introduzir novos componentes em seus complexos sistemas de TI.
“É fácil simplesmente manter as coisas como estão. Varejistas costumam ser máquinas de logística, sempre bem-organizadas, mas a precificação dinâmica não vai mudar essa máquina. Caso o sistema não funcione, eles podem simplesmente deletar uma linha do código e tudo volta a ser como antes”, declara.
Mas mesmo com a resistência atual, o cenário deve mudar num futuro próximo. Com potencial para que as redes aumentem seu piso de ganhos em até 120 mil dólares, simplesmente vendendo os produtos que elas estão acostumadas a jogar fora, Kat se mantém confiante de que o retorno faz esse tipo de investimento se tornar uma decisão fácil para aqueles vendedores com bom olho para os negócios.
“Precisamos atender as metas de redução de desperdício de alimentos existentes em alguns desses países, mas isso não quer dizer que isso seja fácil. É difícil ser tão eficiente utilizando somente os métodos tradicionais. O mercado precisa abordar esse problema de um ponto de vista diferente”, completa.
REDUZINDO O DESPERDÍCIO EM OUTROS SETORES
O ramo do turismo foi o primeiro a entender o real valor da precificação dinâmica. Hoje, os consumidores já estão acostumados a ver o custo de passagens aéreas e diárias de hotel aumentarem conforme a data de sua viagem se aproxima.
Esse tipo de precificação tem ajudado a cadeia europeia de hostels e hotéis A&O a manter o volume de reservas durante o último ano, apesar da pandemia. Eles usaram a tecnologia de outra startup, chamada Pace Revenue, para manter o ritmo de acordo com as flutuações de demanda dos consumidores.
Enquanto quartos de hotel em cidades maiores geralmente custam mais que em cidades menores, desde o surgimento do Covid-19 os turistas vêm tentando evitar as aglomerações. Com isso, quartos geralmente baratos tiveram um grande aumento na demanda conforme recebiam uma enxurrada de reservas de última hora, aumentando exponencialmente os preços e ajudando os hotéis a negociar todos os quartos com margens de lucro muito maiores que o normal.
Também existe a possibilidade de reduzir o desperdício de alimentos e seus custos marginais dentro da própria indústria da hospitalidade. O CMO da A&O, Philip Winter, fala sobre usar a precificação dinâmica nos valores do café da manhã, por exemplo: “Operamos durante cinco horas seguidas, com apenas alguns clientes às 6h da manhã e uma grande concentração por volta das 9h. Cobrar um preço mais baixo àqueles que tomam café mais cedo por ajudar a limpar o buffet e reduzir o número de alimentos não-consumidos”.
Os preços dinâmicos também têm tido sucesso em outras áreas do varejo. Nos últimos meses, a agência de marketing digital britânica Digital Ethos tem ajudado a introduzir esse sistema em clientes dos ramos da moda, bebidas e decoração, por exemplo.
O ramo da moda, roupas e acessórios é um que costuma ter um fluxo maior do que a maioria dos lojistas, com muitos estabelecimentos mudando seu estoque completo ao menos duas vezes ao ano, de acordo com as últimas tendências e as trocas de estação. Com a precificação dinâmica, um par de jeans da nova coleção pode ver seu preço flutuar dependendo da quantidade disponível e da demanda, inclusive aumentando seu valor caso o estoque diminua. É, na verdade, o oposto do sistema que a Wasteless aplica para os alimentos, mas com o mesmo retorno: elimina a necessidade de precificação manual, aumentando as receitas e diminuindo o desperdício.
Os consumidores estão acostumados com liquidações e etiquetas coloridas como formas de anunciar uma promoção ou queda de valor em um produto. Mas sabemos que eles também estão abertos para aceitar um novo modelo de precificação caso os benefícios estejam claros. Veremos mais varejistas adotando esse tipo de tecnologia para reduzir seu desperdício e vender mais? Tudo depende se eles estarão dispostos a pensar no futuro ou se vão preferir fazer as coisas como sempre.